Publicamos hoje a nossa segunda entrevista sobre a questão das cardiopatias congênitas. Dessa vez a médica é de Mato Grosso, a cardiopediatra Maria Cecília Knoll Farah.
Maria Cecília é pediatra pela Sociedade Brasileira de Pediatria; tem especialização em Cardiologia Pediátrica no Incor-USP – SP; é mestre em Saúde e Ambiente pela UFMT; Doutora em Ciência – Cardiologia pelo Incor-USP –SP e Professora de Faculdade de Medicina – UFMT.
Há anos a médica se dedica aos “Pequenos Corações” e houve um tempo que Cuiabá só poderia contar com ela para atender essas crianças de corações especiais. Uma apaixonada pela profissão e por seus pacientes.

Maria Cecília: Décadas dedicadas aos pequenos corações
Amigos do Coração – Como você vê a atual situação dos cardiopatas congênitos em nosso país e em especial em Cuiabá/Mato Grosso?
Maria Cecília –Posso dizer que desde que as primeiras cirurgias para correção das cardiopatias congênitas ocorreram, na década de 50, o desenvolvimento cientifico e tecnológico avançou extraordinariamente graças à dedicação, empenho e investimento de muitos centros de excelência médica mundial. Dentre eles, o Professor Jesus Eurípides Zerbini no Instituto do Coração – USP foi o pioneiro no Brasil. Nesse mesmo período houve também grande avanço nos conhecimentos e técnicas de terapia intensiva pediátrica e neonatal o que sem dúvida foi importante fator de sucesso das cirurgias cardíacas pediátricas. Hoje existem muitos serviços de Cirurgia Cardíaca Pediátrica, não só nas grandes metrópoles, mas também no interior da maioria dos estados do sul-sudeste do Brasil, que estão aptos a realizar todos os tipos de cirurgia cardíaca pediátrica com excelente índice de sucesso atendendo não só os pacientes locais, mas também os pacientes oriundos de estados e cidades que não possuem todo tipo de tratamento para essas cardiopatias, como é o caso de Mato Grosso
Amigos do Coração – Cuiabá já consegue atender a grande maioria dos seus casos com cirurgias? O que falta para isso? Poderia “desenhar um quadro” da situação local e o que poderia ser feito para melhor atender essas crianças?
Maria Cecília –Primeiro é preciso esclarecer que existem diferentes tipos de cirurgias cardíacas pediátricas com diferentes graus de complexidade. Há cirurgias para corrigir definitivamente o defeito cardíaco congênito. São cirurgias de grande porte, realizadas “dentro” do coração enquanto uma máquina mantém a circulação do sangue garantindo a sobrevivência do paciente. Em outras situações há necessidade de realizar-se um procedimento paliativo (não corretivo) que garanta a sobrevida do paciente postergando cirurgia cardíaca corretiva. É um procedimento mais simples, mas também muito delicado.
Temos também que considerar a diversidade de pacientes. Por exemplo; existem pacientes que precisam de cirurgia logo após o nascimento quando pesam de 2 a 3 kg. Existem até prematuros com menos de um quilo nessa situação. Por outro lado existem crianças que conseguem conviver com sua cardiopatia por anos necessitando de cirurgia quando já tem idade e peso maiores.
Em Cuiabá é realizada a maioria das cirurgias paliativas, mesmo em recém nascidos muito pequenos, mas as cirurgias corretivas são realizadas apenas para crianças maiores. Resta, portanto uma lacuna que engloba grande número de crianças que precisam ser transferidas para outros estados para receberem o tratamento adequado. O pior é que muitas vezes isto ocorre em situações críticas e urgentes obrigando a transferências em UTI aérea. Fazendo uma comparação com a cirurgia cardíaca pediátrica praticada atualmente nos centros de excelência do Brasil e do mundo posso afirmar que o MT está 40 anos atrasado.
Amigos do Coração – Os hospitais estão preparados para atender os cardiopatas?
Maria Cecília –Nos últimos 25-30 anos várias equipes de cirurgia cardíaca se esforçaram por implantar a cirurgia cardíaca pediátrica em Cuiabá. Atualmente a maioria das equipes opera adultos e jovens com mais de 30kilos. Apenas uma equipe realiza cirurgias em crianças graças à persistência e dedicação da equipe da Dra. Ana Helena Dotta, cirurgiã cardiovascular que realiza os procedimentos de cirurgia cardíaca paliativa no período neonatal e os procedimentos corretivos em crianças maiores. Trabalhando há aproximadamente 10 anos, muitos prematuros, inclusive os prematuros extremos que pesam menos de 1 kilo, recém nascidos cardiopatas e crianças maiores foram operados. O trabalho desta equipe poderia ser muito mais abrangente se tivesse recebido o apoio necessário das Secretarias de Saúde, já que a maioria das crianças cardiopatas necessita de atendimento pelo SUS. Em várias ocasiões o trabalho desta equipe foi lamentavelmente interrompido por muitos meses em decorrência da interrupção de contrato ou do pagamento dos procedimentos já realizados pelo SUS.
Amigos do Coração – Existe ainda muita burocracia ou dificuldade quando se precisa mandar uma criança para o tratamento fora do domicílio?
Maria Cecília – A maior dificuldade é conseguir a vaga para os pacientes de MT nos serviços de cirurgia de outros estados. O agendamento da consulta ou transferência é feito por uma central nacional de regulação de procedimentos de alta complexidade (CNRAC), na qual nossos pacientes são inseridos via internet. Muitas vezes são meses de espera. Os casos que necessitam da transferência em caráter de urgência são ainda mais complicados, pois existe uma lacuna entre a CNRAC, que não tem um fluxograma diferenciado para casos urgentes e central de urgência e emergência do estado, pois esta faz a regulação apenas dentro do estado de MT.
Amigos do Coração – O diagnóstico precoce, com a inclusão do “eco fetal” como um dos exames disponíveis para todas as gestantes, poderia minimizar o número de crianças que morrem antes de chegar ao tratamento?
Maria Cecília – Sem dúvida, a tal ponto que Curitiba, por exemplo, instituiu o programa “mãe Curitibana” onde todas as gestantes são submetidas ao ecocardiograma fetal.
Há também de se destacar a importância do catetrismo. Trata-se de procedimento de grande importância tanto no diagnóstico como promovendo intervenções terapêuticas que evita uma cirurgia. Esta tecnologia tem avançado muito nos últimos anos e muitos das cardiopatias que há poucos anos necessitava de cirurgia, atualmente podem ser resolvidas pelo cateterismo intervencionista. Neste aspecto Cuiabá conta com bons profissionais.
Amigos do Coração – Somente isso seria o bastante para melhorar o atendimento aos cardiopatas?
Maria Cecília – Não, é um passo importante, mas no caso de MT é preciso dar maior apoio para que a cirurgia pediátrica possa progredir e se tornar mais atuante. Paralelamente precisamos também de maior número de cardiopediatras e de leitos de terapia intensiva pediátrica
Amigos do Coração – Pesquisa mostrada na Veja (Com base em estudo do cirurgião cardiovascular Valdester Cavalcante- CE) diz que “O problema no atendimento a esses pacientes é agravado com a primeira geração de cardiopatas congênitos que acaba de chegar à idade adulta. Como a situação ainda é inédita, já que a sobrevida dessas pessoas nunca na história da medicina foi tão alta, a cardiologia se encontra num impasse – e tem poucas pesquisas em que se basear. Quem seria o melhor especialista para atender a esses adultos cardiopatas: um cirurgião pediátrico ou aquele que só opera adulto, mas que sabe tratar cardiopatia congênita? “Existe ainda a possibilidade de um terceiro tipo de médico, especializado nesses pacientes”, diz Nadja Cecilia Kraychete de Castro, coordenadora do Serviço de Cirurgia em Cardiopatia Congênita do Hospital Ana Nery, em Salvador”. O que a senhora acha Dra?
Maria Cecília – A exemplo do que ocorreu no exterior Já existe um grupo de cardiopediatras se organizando no Brasil para estudar esta questão e o atendimento destes pacientes.
Amigos do Coração – E a situação dos pais ao saber que irão ter um filho cardíaco, também não deveria ser tratada mediante o diagnóstico, já que o psicológico da família também fica afetado?
Maria Cecília – Geralmente as equipes de cirurgia cardíaca pediátricas são multidisciplinares e o papel da Psicóloga é muito importante, não só para abordar o paciente, mas também para dar apoio para os familiares.
Amigos do Coração – O Dia de Conscientização da Cardiopatia Congênita, bandeira levantada pela Associação de Assistência à Criança Cardiopata Pequenos Corações (com sede em São Paulo) e pais e amigos de crianças cardiopatas, foi importante para que muita gente começasse a pensar sobre o assunto?
Maria Cecília – Sem dúvida. Minha expectativa é que sim. Precisamos principalmente chamar a atenção dos gestores de saúde de MT para este grupo de pacientes.
Amigos do Coração – A criação da própria Pequenos Corações… Pode-se dizer que fez toda a diferença?
Acredito que em MT ainda fará, promovendo a discussão do assunto na sociedade como um todo.
Amigos do Coração – Não precisamos de mais envolvimento das partes envolvidas: Gestores, médicos, pais… Sociedade civil organizada?
Maria Cecília – Creio que seja esta a principal função do grupo Pequenos Corações. Em Cuiabá existem profissionais capacitados para alavancar o progresso da cirurgia cardíaca pediátrica em MT.
Amigos do Coração – Em sua opinião, qual o maior desafio, daqui por diante, para que as Cardiopatias Congênitas sejam vistas pelo país como várias outras doenças (câncer, hipertensão arterial etc.) que hoje ganham importantes campanhas nacionais e vários simpatizantes?
Maria Cecília – O maior desafio é conseguir a conscientização da sociedade como um todo. Os grupos, como o do câncer, que hoje tem grande penetrância na mídia e conseguem muita ajuda da sociedade, estão colhendo frutos de décadas de trabalho de pais e amigos que defendem suas causas.
Amigos do Coração – Poderia tecer as suas considerações finais…
Maria Cecília – Gosto de acreditar que nosso Estado, que é o “celeiro do mundo”, região de grande progresso e pujança, onde vemos diariamente as transformações ocorrendo em vários setores: econômicos, na construção civil,na agropecuária, na iniciativa privada etc., possa proporcionar as condições necessárias para que o progresso chegue também para a assistência das crianças com cardiopatias congênitas.
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